Quando eu era criança achava que todas as pessoas inteligentes tinham lido a enciclopédia inteira. Eu tinha 10 anos e meu irmão 7, quando meus pais compraram a Barsa completa, reformaram o quarto e estudos e ela reinava gloriosa nas prateleiras mais acessíveis para nossas mãos de criança. Meu irmão não ligou muito, afinal, na idade dele não havia muito uso para aqueles livros, mas eu fiquei encantada. Abria aqueles livros com o maior cuidado e fazia todos os meus trabalhos sobre o corpo humano e o sistema solar consultando as páginas com os verbetes em ordem alfabética.
Alguns meses depois, meu pai começou a colecionar a Enciclopédia Larousse, que vinha uma vez por mês junto com uma assinatura de uma revista que ele gostava. Os livros eram mais finos e foram colocados na prateleira de baixo da Barsa. Por algum motivo, eu achava a Barsa mais confiável, bonita e organizada. Depois que a minha avó, mãe do meu pai, faleceu, ainda herdamos uma enciclopédia mais antiga (ainda se escrevia estrêla) chamada Tesouro da Juventude. Esta, eu manipulava com cuidado porque as folhas já estavam amareladas e frágeis. Tenho memórias claras da minha pessoa criança, com uma ou mais enciclopédias abertas, meu caderno ou folhas de papel pautado na minha frente, escrevendo minhas respostas para as tarefas de casa. Nunca consegui ler nenhuma das três enciclopédias inteiras.
Nessa época, estava com dificuldades em história e geografia - muito mais por conta de uma professora que fazia terrorismo psicológico com crianças e uma miopia ainda não detectada, do que por qualquer negligência com os estudos - e resolvi expressar isso dizendo a meus pais o seguinte: "eu acho que hoje em dia as crianças têm mais dificuldade com os estudos do que antigamente". A cena grudou em minha mente. Meus pais, sentados na cama vendo televisão, meu irmão alheio a qualquer coisa batendo uma bola na parede, e eu sentada no chão com as pernas dobradas e a cabeça entre os joelhos. Meu pai colocou a tv no mudo, olhou para a minha mãe e depois para mim, e disse, quase gritando "o quê? você está muito errada! você não sabe como é fácil estudar agora, vocês têm enciclopédia, computador, na nossa época..." e o que se seguiu foi uma palestra de o que me pareceram horas em que eu ouvi calada sobre como eu estava sendo ingrata ao dizer aquilo e que o real sofrimento tinha sido o deles.
A partir de então, mesmo que eu evitasse dar minha opinião sobre qualquer assunto, às vezes algo escapava e lá vinham mais palestras em que eu ouvia como eu estava errada e eu não sabia de nada. Bom, se eu tivesse lido toda a enciclopédia Barsa, talvez eu soubesse alguma coisa? Mas eu estudava tanto, eu gostava tanto de fazer anotações nas aulas, eu fazia minhas tarefas tão bonitas e caprichadas.
Uma vez, minha mãe foi na escola - e ela conta essa história até hoje a todo mundo - para saber por que meu irmão estava tirando notas boas, se ela nunca via ele pegando em nenhum livro. A coordenadora, obviamente estranhou, mas meu irmão não parecia estar filando, ele só tinha facilidade em aprender e não precisava anotar nada nos cadernos, os quais ele usava apenas para fazer bolas e aviões de papel.
Para minha sorte, eu não tinha consciência dessa violência que sofri durante minha infância, adolescência e até sair da casa dos meus pais. Minha reação foi apenas estudar mais e mais, a ponto de perder minhas habilidades sociais porque só tinha prazer em passar horas escrevendo nos cadernos, até no recreio. Entretanto, nas aulas, eu nunca abria a boca. Eu sabia que minha opinião estaria errada, então era melhor ficar calada para não arriscar. Aos trancos e barrancos psicológicos, me vi em situações acadêmicas e no trabalho em que fui percebendo que as pessoas queriam ouvir realmente o que eu tinha a dizer e comecei a me adaptar. Normalmente, só falo o mínimo possível e consigo responder quando me perguntam. Tenho tremedeiras incontroláveis quando preciso conversar - mesmo informalmente - com alguma figura de autoridade. Tenho tremedeiras também quando sei que devo falar algo, mas não quero. Eu consegui ser professora e dar aulas apesar de muita coisa. Estou tratando essas questões em terapia. Minhas conversas com a família se limitam a historinhas do passado e amenidades, passando muito longe de qualquer tópico político ou minimamente polêmico. Para eles, mesmo se eu ler a Barsa inteira, eu estarei eternamente errada.
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